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É possível flexibilizar os pagamentos dos acordos trabalhistas em andamento haja vista a instauração da atual crise de saúde pública?

por: Fabiano Alves Zanoni (1)

A dúvida acima é recorrente e urge de resposta, tanto para as empresas que devem honrar seus acordos judiciais, quanto para os trabalhadores que necessitam receber seus direitos, ainda mais no momento que atravessamos.

Se por um lado temos uma obrigação contraída consensualmente pelas partes, por meio da formalização e homologação de acordo trabalhista em momento diverso do atual, após a declaração da pandemia pela OMS (Organização Mundial da Saúde), em 11/03/2020, iremos enfrentar cenário diferente e incerto.

O Codex Civil, em seu artigo 393, explicita que:

  • Art. 393. O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente
    não se houver por eles responsabilizado.
  • Parágrafo único. O caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir.

Muitos doutrinadores entendem que os dois institutos, tanto o caso fortuito como a força maior, são sinônimos. Todavia, o Código Civil não faz distinção entre os termos, e os utiliza em conjunto, sempre ligados pela conjunção alternativa “ou” nas 16 (dezesseis) citações que possui, e neste artigo trataremos desta forma, ou seja, dando o mesmo significado, pois não afetará a conclusão.

Todavia, a título de informação e de forma breve, podemos dizer que caso fortuito é o evento que não se pode prever e aquele que não podemos evitar. Quanto aos casos de força maior seriam os fatos humanos ou naturais, que podem até ser previstos, mas de maneira geral, não podem ser impedidos. Citamos, por exemplo, os fenômenos da natureza ou atos humanos, como guerras, revoluções e outros.

Convém ressaltar que o ordenamento jurídico trabalhista não adotou a teoria da imprevisão, a qual possibilitaria a revisão ou resolução do contrato por ocorrência de fato superveniente, sejam causadas por crises financeiras, medidas governamentais ou qualquer outra circunstância que torne difícil ou impossível o cumprimento da obrigação.

Para a lei laboral, todas as ocorrências citadas estariam abarcadas pelo risco do negócio, de forma que o trabalhador não poderá, nunca, ser responsabilizado.

A Consolidação das Leis do Trabalho é marcada pelo uso do termo “força maior”, dedicando a citá-lo em 27 (vinte e sete) pontos, sendo que, em capítulo próprio, estabelece:

Art. 501. Entende-se como força maior todo acontecimento inevitável em relação à vontade do empregador, e para a realização do qual este não concorreu, direta ou indiretamente.

  • 1º – A imprevidência do empregador exclui a razão de força maior.
  • 2º – À ocorrência do motivo de força maior que não afetar substancialmente, nem for suscetível de afetar, em tais condições, a situação econômica e financeira da empresa não se aplicam as restrições desta Lei referentes ao disposto neste Capítulo.

Da sua leitura entendemos que estão presentes os elementos que caracterizariam a ocorrência de força maior os quais incitariam sua aplicação nesse momento de pandemia mundial, o que, na forma da lei trabalhista, possibilitaria ruptura contratual, com pagamento reduzido de indenizações e até de salários, na forma dos artigos 502 e seguintes da CLT.

Ou seja, mesmo que, quando da sua elaboração legislativa, não se tenha previsto os acontecimentos atuais, entendemos que esse artigo em comento merece detida análise e, por esse motivo, o presente artigo, irá a seguir estudá-lo sobre o prisma prático.

A seguir traçaremos uma linha de acontecimentos necessária para o entendimento do caso:

1-01/12/2019 – O COVID-19 foi identificado pela primeira vez na cidade de Wuhan, na província de Hubei, na China;

2- 25/02/2020 – Confirmação do primeiro caso de COVID-19 no Brasil;

3-06/02/2020 – Publicada a Lei 13.979/2020, que dispõe sobre medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus, responsável pelo surto iniciado em 2019.

4-10/02/2020 – O presidente da República assina a MEDIDA PROVISÓRIA 921/2020 e destina R$ 11.287.803,00 (onze milhões, duzentos e oitenta e sete mil, oitocentos e três reais) para o Ministério da Defesa para combate ao vírus;

5-11/03/2020 – OMS declara pandemia mundial;

6-20/03/2020– É declarada  a ocorrência de estado de calamidade pública pelo Decreto Legislativo nº 06 no País;

7-21/03/2020 – É declarada  a ocorrência de estado de calamidade pública no estado de São Paulo, pelo
Decreto Legislativo 64.879 de 20/03/2020;

8-22/03/2020 – Publicada a MEDIDA PROVISÓRIA 927/2020, que dispõe sobre as medidas trabalhistas que poderão ser adotadas pelos empregadores para preservação do emprego e da renda e para enfrentamento do estado de calamidade pública reconhecido.

Em suma, em menos de um mês após a identificação da doença no País, ela já traz implicações nos contratos de trabalho, já produzindo seus efeitos tanto na forma da prestação do trabalho quanto nas consequências do isolamento forçado e necessário para contenção do vírus, as quais afetam diretamente a economia.

Neste cenário, empresas são impactadas diretamente pela paralisação das atividades, e os trabalhadores estão à mercê da ajuda do governo federal aguardando uma MEDIDA PROVISÓRIA emergencial, visto que muitas empresas, principalmente as do ramo de comércio em geral e do setor de serviços, as que mais sofrerão impactos, sem olvidar as micro e pequenas empresas.

No que tange aos acordos trabalhistas em andamento: como pode proceder a empresa? E os trabalhadores, tidos como hipossuficientes nesta relação, o que devem alegar em sua defesa? O risco do negócio pode ser relativizado ainda sob estado de calamidade e declarada força maior?

As empresas, ora reclamadas, em razão da pandemia instalada, não tardarão a peticionar nos autos dos acordos requerendo suspensão dos pagamentos, paralisação dos atos executórios por pelo menos 90 dias, atenuação das medidas coercitivas, entre outros, arrimadas pela paralisação dos serviços e até pela ausência de faturamento em virtude do fechamento de seus comércios ou suspensão das suas atividades.

Na tentativa de demonstrar o entendimento do Poder Judiciário, realizamos pesquisa jurisprudencial, por amostragem, buscando despachos que citassem o verbete “força maior’, nos TRTs da 2ª Região (São Paulo) e 3ª Região (Minas Gerais) e em seus Diários Oficiais publicados em 25/03/2020.

No TRT da 2ª Região (São Paulo) localizamos 3 (três) pedidos, requerendo a suspensão da execução por 90 (noventa) dias, motivados pela crise. Todos foram indeferidos sob o argumento de que os acordos foram entabulados recentemente, quando a crise já era prevista (há menos de 20 dias), de forma que o risco do negócio recai sobre a empresa.

Em pesquisa ao TRT da 3ª Região (Minas Gerais), foram localizados 3 (três) casos de interesse. No primeiro, houve determinação de pagamento em 48h pela empresa, seguido de pedido de prorrogação do prazo em razão de força maior, o que foi indeferido, visto o prazo do artigo 880 da CLT ser improrrogável e não haver comprovação da força maior, sendo determinado o prosseguimento. No segundo caso, a empresa pediu a suspensão dos pagamentos do acordo por 120 (cento e vinte) dias, o qual foi firmado em dezembro e homologado em janeiro deste ano. O Juiz, neste caso, atendeu em parte o apelo da empresa, determinando a redução das parcelas do mês de março e abril pela metade, implicando o acréscimo de outras duas parcelas em maio e junho, com pagamento do valor abatido. Os honorários assistenciais ficaram com pagamento para julho. Citou em sua decisão o artigo 831, parágrafo único da CLT, mas permitiu sua flexibilização ante o disposto no artigo 505, inciso I do CPC. Declarou a seguir que se houver atraso no pagamento das parcelas reduzidas e dos honorários, incidirá a multa anteriormente pactuada. No terceiro caso, a empresa informou que se encontra com suas atividades paralisadas, por motivo de prevenção e colaboração, asseverando que seus contratantes também interromperam suas atividades, reconhecendo em sua minuta que o risco do negócio pertence à empresa, na forma do artigo 2ª da CLT, mas que deverá ser relativizada em virtude da Lei federal 13.979/2020, em seu artigo 8º, clamando ao final, que a última parcela do seu acordo vencida em 25/3/20 seja postergada para o 5º dia útil posterior ao retorno das suas atividades, suspensas por tempo indeterminado por força de Decreto 17.304/2020 da prefeitura de Belo Horizonte, sendo que neste caso o juiz determinou manifestação da outra parte em 5 dias.

Pois bem, temos em comum aos casos um acordo homologado que possui força de decisão irrecorrível, realizado em tempo próximo ou não à crise, mas invariavelmente afetado por ela, devido ao seu trato continuado.

Esse ato seria passível de reavaliação ou flexibilização?

Entendemos que, dada a singularidade dos acontecimentos, as disposições da Lei 13.979/2020, à força maior imposta pelo enfrentamento de uma pandemia cabe relativização dos acordos judiciais em andamento, pois de um lado há uma empresa afetada por um crise que não deu causa, e de outro um trabalhador que recebe seus direitos de caráter alimentar e não raras vezes totalmente dependente dele.

Não se pode adotar uma só medida para todos os casos, pois é sabido que os micro e pequenos empresários participarão com sacrifício ainda maior que os demais, principalmente aqueles dos ramos do comércio, que tiveram suas atividades suspensas por meio de decretos que pipocam em todo o País.

A empresa que apelar ao Poder Judiciário, apesar do artigo 374 do CPC, ao nosso ver, deve demonstrar as razões que a obrigaram a cessar suas atividades e a provar sua condição financeira atual. Desta forma terá mais chances de convencer o magistrado de suas necessidades e, de outro lado, é plenamente esperado que o juiz requeira a manifestação do autor, que por sua vez deverá informar e provar que essa parcela do acordo é sua única fonte de renda. Não se espera que o juiz, neste momento, decida sem ouvir a outra parte, mas que se respeite a transitoriedade, relevância e urgência exposta na MEDIDA PROVISÓRIA 927/2020.

É certo que as partes podem realizar aditamento ao acordo, e a qualquer momento renegociar seus termos, mas isso dependerá do bom senso de ambos, o que se impõe nesse momento, respeitada a coisa julgada que se opera sobre os acordo homologados.

Por demais do exposto, ainda que transitoriamente, tendo em vista a situação excepcional enfrentada, o momento é de reflexão, bom senso entre as partes e de atenção ao pagamento dos acordos, podendo a empresa propor a diluição das parcelas e ampliar seu prazo para pagamento desde que, comprovadamente, não reúna forças para manter os pagamentos no período de mais alguns meses, nunca procrastinando para após a crise, posto que hoje ainda não há consenso até quando ela se arrastará.

Permitir os pagamentos para após o término da crise seria impor uma penalidade ainda maior ao trabalhador, enquanto nada fazer pelas empresas, com especial atenção para aquelas que se encontram fechadas, também seria injusto, pois outros empregados poderiam ser igualmente prejudicados.

(1) Advogado, especialista em Direito do Trabalho e Previdenciário. Formado pela Universidade de São Caetano do Sul (USCS) em (2003) e Pós-Graduado pela ESA-SP – Escola Superior de Advocacia da OAB-SP (2014).

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